Passo a partilhar convosco um caso com que me defrontei no desempenho de determinado cargo, no Ministério da Educação. Mais do que humorístico, revela como, às vezes, se pode cumprir a lei e fazer a justiça por linhas tortas!
Num processo disciplinar, instaurado na sequência de uma denúncia, ficaram provados os factos de que era acusado um docente, por sinal muito dedicado e, porventura, o que, na altura, mais se destacava no concelho em que trabalhava. Só que os factos de que o professor era acusado, e que o próprio confessou, tinham de ser levados às últimas consequências, em cumprimento da lei.
Embora considerando todas as atenuantes, não havia como não aplicar-lhe a sanção disciplinar correspondente à infracção de que era acusado. Por outro lado, não era possível determinar-se a suspensão da sanção aplicada, visto que a pena em questão (inactividade por seis meses) era e é insusceptível de tal medida.
Não se insurgindo contra a pena de seis meses de inactividade, que havia sofrido, até porque receava a demissão, o arguido surpreende-me, entretanto, com o pedido que me formulou durante a audiência que lhe concedi, uns dias depois da notificação da pena:
- Senhor Dr., eu receava o pior, a demissão, mas agora lhe peço, por amor de Deus, um grande favor: não me afaste do trabalho!
- Mas o que acha que podemos fazer, senhor professor? Temos que aplicar-lhe a pena. É da lei!
- Eu poderia trabalhar durante os seis meses de graça, sem receber salário, mas não quero que, ficando em casa, durante seis meses, as pessoas – a família, a namorada, os colegas, enfim, todos – fiquem a saber da minha conduta passada, que me envergonha! Se vier a saber-se, não terei coragem para voltar à profissão e enfrentar as pessoas!...
- Mas, nos termos da lei, não lhe podemos permitir isso: a pena já foi notificada e vai constar do seu processo individual, pelo que as pessoas vão saber e…
- Senhor Dr., eu sei que, de acordo com a lei, a pena não vai ser publicada no Boletim Oficial. E as pessoas que conhecem o processo são idóneas e discretas; não vão divulgar o caso… De todo o modo, eu posso arriscar! Por favor! …
-Lamento, peça-me outra coisa, mas não esta…Não quero criar precedentes que depois não saberei gerir!
O professor, aparentemente resignado, saiu do meu gabinete, despedindo-se. Fiquei pesaroso, mas…
Já me tinha esquecido do caso quando, cinco meses depois, num certo dia do mês de Junho, visitei o concelho onde trabalhava o docente sancionado. Foi com grande surpresa que o encontrei a trabalhar nos Serviços de Coordenação Pedagógica da Delegação concelhia.
Meia hora mais tarde, discretamente, o docente em causa pede-me um minuto de atenção, que aproveitou para me dizer:
- Senhor Dr., não me denuncie, não me afaste daqui! Afinal, estou a cumprir a sanção, pois estou oficialmente afastado do serviço. Além disso, estou a trabalhar e não recebo salário. O meu remorso pela conduta leviana do passado é outro grande castigo, não acha? Aquilo não se repetirá na minha vida! Por favor…
- Senhor Dr., peço perdão, mas tive pena e deixei-o trabalhar! E não me arrependi, pois tem sido o meu melhor professor – diz-me o Delegado do Ministério, que se aproximou, adivinhando, certamente, o conteúdo da conversa…
Pensei por momentos... O que acham que eu respondi?
Não respondi, mas pensei, comigo, que era um caso caricato: professor inactivo em actividade! De todo o modo, feitas as contas, já só faltava um mês de cumprimento da sanção e estava praticamente no fim o ano lectivo... Por outro lado, todos ficaram a ganhar, não? O Estado, o professor… Será que, neste caso, se fez a justiça por linhas tortas?