sábado, 5 de dezembro de 2020

Os manuais e o burro

Há dois anos, estalou em Cabo Verde o  chamado "escândalo dos manuais", que marcou negativamente a atuação de altos responsáveis do Ministério da Educação, acusados de negligência e incompetência na gestão do processo de produção de alguns manuais, nomeadamente de Língua Portuguesa e de Matemática,  que foram colocados no mercado com numerosos erros de conteúdo e gralhas.

Profesores, encarregados de educação e setores da sociedade civil reagiram a essa situação, pedindo a retirada de circulação desses manuais e a demissão dos principais dirigentes.

Ao que se diz, até um burro resolveu entrar na "rejeição" desses manuais, como bem o ilustra um vídeo humorístico que o génio crioulo produziu  e fez circular amplamente nas redes sociais.
Transcrevemos o que "disse" o buro (ver imagem) no referido vídeo:

Em crioulo:
Nhos txoman kes djentis ki sta fazi livru pa kriansas studa n'el, nhos fla's ma mi n'ka mesti kolega mas ki si, padja ka ten, txuba ka txobi, i mi 'n ka kre dividi kumida ku nindjen

Tradução para o Português:
Chamem essas pessoas que fazem livros para a aprendizagem das crianças e digam-lhes que não preciso de mais colegas: não há pasto, não choveu e e eu não quero dividir a comida com mais ninguém.

Imagem do burro no famoso vídeo






 



terça-feira, 1 de dezembro de 2020

A carta

Anastácio Lopes, o célebre  humorista cabo-verdiano,  conhecido vulgarmente por Nho Puxinho, conta a história de uma carta ao Compadre Magalhães, escrita em "português", que o destinatário teve de mandar traduzir para a língua de Camões para poder ser compreendida.

Este conto  ilustra, com o exagero desculpável de um conto humorístico, a forma como em certos setores da sociedade cabo-verdiana se faz uso do Português,  língua oficial em Cabo Verde.

Carta ao Compadre Magalhães

domingo, 29 de julho de 2007

Inactivo em actividade!

Passo a partilhar convosco um caso com que me defrontei no desempenho de determinado cargo, no Ministério da Educação. Mais do que humorístico, revela como, às vezes, se pode cumprir a lei e fazer a justiça por linhas tortas!

Num processo disciplinar, instaurado na sequência de uma denúncia, ficaram provados os factos de que era acusado um docente, por sinal muito dedicado e, porventura, o que, na altura, mais se destacava no concelho em que trabalhava. Só que os factos de que o professor era acusado, e que o próprio confessou, tinham de ser levados às últimas consequências, em cumprimento da lei.

Embora considerando todas as atenuantes, não havia como não aplicar-lhe a sanção disciplinar correspondente à infracção de que era acusado. Por outro lado, não era possível determinar-se a suspensão da sanção aplicada, visto que a pena em questão (inactividade por seis meses) era e é insusceptível de tal medida.

Não se insurgindo contra a pena de seis meses de inactividade, que havia sofrido, até porque receava a demissão, o arguido surpreende-me, entretanto, com o pedido que me formulou durante a audiência que lhe concedi, uns dias depois da notificação da pena:
- Senhor Dr., eu receava o pior, a demissão, mas agora lhe peço, por amor de Deus, um grande favor: não me afaste do trabalho!
- Mas o que acha que podemos fazer, senhor professor? Temos que aplicar-lhe a pena. É da lei!
- Eu poderia trabalhar durante os seis meses de graça, sem receber salário, mas não quero que, ficando em casa, durante seis meses, as pessoas – a família, a namorada, os colegas, enfim, todos – fiquem a saber da minha conduta passada, que me envergonha! Se vier a saber-se, não terei coragem para voltar à profissão e enfrentar as pessoas!...
- Mas, nos termos da lei, não lhe podemos permitir isso: a pena já foi notificada e vai constar do seu processo individual, pelo que as pessoas vão saber e…
- Senhor Dr., eu sei que, de acordo com a lei, a pena não vai ser publicada no Boletim Oficial. E as pessoas que conhecem o processo são idóneas e discretas; não vão divulgar o caso… De todo o modo, eu posso arriscar! Por favor! …
-Lamento, peça-me outra coisa, mas não esta…Não quero criar precedentes que depois não saberei gerir!

O professor, aparentemente resignado, saiu do meu gabinete, despedindo-se. Fiquei pesaroso, mas…

Já me tinha esquecido do caso quando, cinco meses depois, num certo dia do mês de Junho, visitei o concelho onde trabalhava o docente sancionado. Foi com grande surpresa que o encontrei a trabalhar nos Serviços de Coordenação Pedagógica da Delegação concelhia.

Meia hora mais tarde, discretamente, o docente em causa pede-me um minuto de atenção, que aproveitou para me dizer:

- Senhor Dr., não me denuncie, não me afaste daqui! Afinal, estou a cumprir a sanção, pois estou oficialmente afastado do serviço. Além disso, estou a trabalhar e não recebo salário. O meu remorso pela conduta leviana do passado é outro grande castigo, não acha? Aquilo não se repetirá na minha vida! Por favor…
- Senhor Dr., peço perdão, mas tive pena e deixei-o trabalhar! E não me arrependi, pois tem sido o meu melhor professor – diz-me o Delegado do Ministério, que se aproximou, adivinhando, certamente, o conteúdo da conversa…

Pensei por momentos... O que acham que eu respondi?

Não respondi, mas pensei, comigo, que era um caso caricato: professor inactivo em actividade! De todo o modo, feitas as contas, já só faltava um mês de cumprimento da sanção e estava praticamente no fim o ano lectivo... Por outro lado, todos ficaram a ganhar, não? O Estado, o professor… Será que, neste caso, se fez a justiça por linhas tortas?



sábado, 28 de julho de 2007

A tramitação de um interessante requerimento


O episódio que se segue, absolutamente verídico, mostra que a questão do domínio da língua portuguesa em Cabo Verde e, provavelmente, no espaço lusófono, precisa de maior atenção.

1. Um alto dirigente do Ministério da Educação de Cabo Verde recebe um requerimento do seguinte teor:

“F de tal ___, Licenciado em Cumunicação Social pela Universidade de ____, venho mui respeitosamente requerer ao Vossa Excilência se digne mandar admitir-me numa das vagas de docente ou técnico superior ezistente ou que venha a ezistir, de prifirência na cidade da Praia.

Pede indeferimento.

Praia, ….
Assinado: F de tal"

2. Analisado o requerimento, o dirigente em questão não hesitou. Exarou, de pronto, o seguinte Despacho:

“Concordo com o indeferimento do pedido formulado pelo próprio requerente, cuja duvidosa competência transparece, aliás, claramente, no texto do requerimento.
Praia, …
O ____,
Rubrica”

3. Descontente com o teor do despacho, o autor do requerimento faz a seguinte reclamação perante
aquela entidade:

“F de tal ___, Licenciado em Cumunicação Social pela Universidade de ____ , encorformado com o dispacho que Vossa Excilência se dignou ezarar sobre o meu riquirimento de ____ vem reclamar do seu inuzitado dispacho com o siguinte fundamento: embora o meu riquirimento mereceu sua concordância, Vossa Excilência ensinuou acerca da minha competência, o que não deixa de ser inuzitado e afrontoso, pois que o cignatário é altamente competente, sendo possuidor de Licenciatura em Cumunicação Social por uma das mais pristigiada universidade do espaço lusófono.

Pede indeferimento.
Praia, ….
Assinado: F de tal”

4. Dias depois, o requerente recebe novo despacho superior, exarado sobre a carta de reclamação:
“Não descortinando o motivo da reclamação do requerente, porquanto o seu pedido de indeferimento foi por mim aceite, confirmo o meu despacho anterior, com base, aliás, em novas evidências de duvidosa competência constatadas no texto ora em apreço.
Notifique-se.
Praia, …
Rubrica”


Nota: Não se sabe se o ilustre Licenciado acabou por entender o que verdadeiramente se passou, mas alguém o terá ajudado nesse sentido, pois não voltou à carga.

terça-feira, 24 de julho de 2007

A história de uma pesquisa na Internet

Há uns anos, propus aos meus alunos de determinada turma, de um dado curso superior, que realizassem trabalhos de pesquisa sobre diversos temas, de entre os quais a "evolução dos paradigmas ou modelos de Inspecção Educativa".

O grupo que escolheu este tema apresentou, em tempo record, um trabalho que, ao ler, descobri, imediatamente, ser um texto meu.

Já me esquecera de que esse texto era um dos vários trabalhos que eu havia enviado, por e-mail, a um colega estrangeiro, que mos solicitara, no âmbito do intercâmbio de trabalhos académicos que vínhamos fazendo.

Por isso, não foi sem surpresa que recebi como alegado trabalho de pesquisa esse texto meu que, do princípio ao fim, não tinha sofido qualquer alteração, a não ser, é claro, as menções da praxe: curso, ano, turma, disciplina e lista dos participantes.

No intervalo, interpelei o responsável do grupo:
- Recebi o “vosso” trabalho, mas não gostei nada do que me aprontaram!
- Porquê, professor? É um bom trabalho!
- Obrigado pelo elogio, mas pedi um trabalho vosso! - retorqui.
- Mas é claro que é nosso: fizemos uma pesquisa na Internet e…
- O quê?! – Interrompi-o, lembrando-me, então, de que o meu colega me tinha perguntado se não me importava que ele publicasse no site da sua universidade, como colaboração minha, alguns dos textos que eu lhe enviara.
- Pois é, prof…
-Pois é, os senhores foram copiar um trabalho meu, publicado na Internet, para, de se seguida, mo apresentarem como de vossa autoria! Uma grande proeza, não?
- …
- Têm mais uma semana para me apresentarem um trabalho vosso, sob pena de receberem zero valores em trabalho de pesquisa. Estamos conversados! - disse eu, entre zangado e divertido.

Os “malandros” pesquisadores nem sequer se tinham dado ao trabalho de ler, no canto inferior direito do texto cabulado, a seguinte anotação: "colaboração do docente Bartolomeu L. Varela, Inspector da Educação"...

Bartolomeu Varela

sábado, 7 de julho de 2007

Português, um problema!


Há vários anos atrás, acompanhado de um inspector, efectuei uma visita de supervisão pedagógica a
uma determinada escola do ensino básico da capital cabo-verdiana.

Antes de iniciarmos a visita às aulas, dirigimo-nos, como é da praxe, ao gabinete da gestora, que nos recebeu, com simpatia, a fim de lhe apresentarmos os objectivos da acção inspectiva e recebermos algumas informações de que precisávamos.

Porque as primeiras impressões eram favoráveis – a boa aparência externa da escola, a higiene no espaço circundante, a ordem que se vislumbrava na secretaria e o ambiente acolhedor do gabinete da gestora –, a conversa com a gestora começou com um elogio, quanto mais não fosse para colocar à-vontade a nossa interlocutora:
- Aqui nos tem, senhora Gestora!- disse-lhe eu. Estamos aqui para, de algum modo, contribuirmos para elevar, ainda mais, a qualidade de desempenho da sua escola. No entanto, pelo que estou ver, se calhar, esta escola não terá muitos problemas!...
- Oh! Sr. inspector, por acaso, aqui nós temos VÁRIAS PROBLEMAS!
- Pronto! Eis o primeiro problema da escola: a dificuldade da gestora em expressar-se, correctamente, na língua de Camões! - segreda-me, ao ouvido, o meu colega.
- Enfim, espero que os professores não tenham o mesmo problema – retorqui, para comigo….

Mas, durante a supervisão das aulas, a minha secreta esperança não passou disso mesmo: uma esperança que não correspondia à realidade! Tal gestora, tais professores, tais alunos!...

Enfim, lá nos esforçámos, ao longo da visita, por deixar sugestões práticas sobre a metodologia mais adequada de ensino-aprendizagem da língua portuguesa num país em que esta língua, sendo oficial, não é, todavia, a língua materna…


Bartolomeu Varela

O senhor Auditor!


Supostamente, a introdução da auditoria nas instituições educativas deveria constituir um passo de grande alcance no processo de promoção da excelência do serviço educativo. Com efeito, a auditoria, que se apoia em métodos e procedimentos científicos e em normas universalmente aceites, visa aferir o grau de eficiência e eficácia das escolas e formular propostas de melhoria.


Ao contrário das modalidades de fiscalização (como a averiguação, o inquérito ou a sindicância), que podem desembocar em medidas de efectivação de responsabilidade disciplinar, a auditoria não tem propósitos punitivos, não visa reprimir os agentes educativos, mas sim ajudá-los, por um lado, a manter, consolidar ou melhorar os aspectos positivos do seu desempenho e, por outro, tomar consciência dos seus pontos fracos e das formas de os superar.

Teoricamente é assim e, na prática, existem muitos bons exemplos a confirmar a teoria. Todavia, nem sempre as experiências de implementação das auditorias têm sido as melhores, por causas as mais diversas, de entre as quais relevam: o défice de formação dos que realizam as auditorias (inspectores, coordenadores e outros); a insuficiente informação dos entes a serem auditados (gestores, docentes e outros agentes educativos). Na verdade, mais vale prescindir de realizar auditorias, nas suas múltiplas modalidades, do que levá-las a cabo de forma incorrecta ou sem que as condições necessárias sejam reunidas.

A seguinte anedota, ao que me disseram verídica, mostra como a implementação apressada ou improvisada de novos métodos no sistema educativo pode ter efeitos contrários aos pretendidos:

Num país europeu, o gestor recebe uma nota da Inspecção Educativa informando-o de que, uma semana depois, seria realizada uma auditoria à sua escola e que o auditor era um fulano que era inspector de educação, por sinal dos mais graduados.

Desconhecendo o que era, verdadeiramente, um auditor – mas, tendo, no passado, recebido uma visita inspectiva que foi para ele uma dura prova–, o nosso gestor passou uma semana de tormento, tão grande era o receio de ser apanhado em falta pelo auditor.

No dia em que deveria iniciar-se a auditoria, o gestor apresentou-se, pontualmente, na escola e dirigiu-se ao seu gabinete, não sem antes instruir a chefe de secretaria no sentido de mandar entrar o auditor logo que ele chegasse.

Minutos depois, aparece um sujeito de aparência distinta, com óculos escuros e uma pasta na mão. Dirige-se, secamente, à chefe de secretaria:
- O senhor gestor, por favor! …
- Venha comigo, está à sua espera!

A chefe de secretaria encaminha-o, de imediato, ao gabinete do gestor. Abre a porta e anuncia:
- O senhor auditor!

O gestor suava em bicas! Atarantado, e aos tropeções, tenta erguer-se da cadeira para balbuciar um cumprimento ao visitante, mas é abruptamente interrompido por este, que lhe ordena, com cara de poucos amigos, ao mesmo tempo que lhe aponta uma pistola, saída meteoricamente do bolso do
casaco:
- Quieto! Este é um assalto. Quero todo o dinheiro que guarda nesse cofre!
- Quê?! Ah! Ah! Ah!... Ah! Ah! Ah – desata em grande gargalhada o gestor, surpreendendo o ladrão, que não esperava tal reacção.
- …?
- E eu que pensava que era o auditor! – diz o gestor. Faça o favor!
E encheu a pasta do ladrão, com alívio e secreta alegria, por, afinal, não ter sido alvo de uma auditoria mas sim de um roubo.

Esta, hein?
Bartolomeu Varela

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